André Julião | Agência FAPESP – Um grupo de pesquisadores de Campinas e de Barcelona identificou um conjunto de genes cuja atividade está alterada no intestino de pacientes com a doença de Crohn – síndrome que afeta o sistema digestivo e tem como principal sintoma dor abdominal associada à diarreia, febre, perda de apetite e peso. A descoberta pode levar a uma melhor compreensão da enfermidade e a formas mais eficientes de predição e tratamento. Os resultados são parte de uma pesquisa financiada pela FAPESP.
O estudo foi publicado no Journal of Translational Medicine por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Hospital das Clínicas de Barcelona, na Espanha.
Descrita em 1932 por Burrill B. Crohn (1884-1983), a doença está relacionada a um desbalanço no sistema imune e tem origem genética e ambiental. Uma característica é o aumento do chamado tecido adiposo mesenterial, que fica próximo às alças intestinais. Nos pacientes com a doença, essas dobras do intestino ficam constantemente inflamadas, gerando diarreias nos casos mais leves ou mesmo demandando cirurgia nos mais graves, quando há perfuração ou obstrução intestinal.
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“Não se sabe exatamente se o tecido adiposo mesenterial mais espesso é causa ou consequência da doença, mas identificamos que ele tem células imunes de memória. Elas podem deflagrar uma recorrência da doença mediante algum estímulo ou mesmo aumentar o processo inflamatório”, diz Raquel Franco Leal, professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp e coordenadora do estudo.
Sua equipe sequenciou o RNA de amostras desse tecido e do íleo – parte final do intestino grosso – de dois grupos de pacientes. Um deles foi operado por conta da doença de Crohn. Outro, que funcionou como controle, passou por cirurgia devido a outras condições não relacionadas a doenças inflamatórias.
“Com o sequenciamento, pudemos estudar quais vias imunológicas foram mais ativadas pela doença. Observamos então que a principal assinatura da síndrome é a presença de plasmócitos, que são células de defesa produtoras de anticorpos”, diz a pesquisadora.
O trabalho tem como autoras principais Francesca Aparecida Ramos da Silva, que realizou a pesquisa como parte do seu doutorado na FCM-Unicamp, com bolsa da Capes, e Lívia Bitencourt Pascoal, que faz estágio de pós-doutorado na instituição, também com bolsa da Capes.
A pesquisa ganhou dois prêmios no 67º Congresso Brasileiro de Coloproctologia (CBP), realizado no segundo semestre de 2019, sendo um deles o Prêmio Angelita Habr-Gama, criado em homenagem a à primeira mulher professora titular em cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
Genes envolvidos
O sequenciamento do RNA do tecido adiposo mesenterial localizou pelo menos 17 genes diferencialmente expressos – para mais ou para menos – em relação ao tecido de pessoas sem doenças intestinais inflamatórias. Foi observada principalmente uma superexpressão de genes ligados a atividade de plasmócitos, que são células de defesa.
No tecido do íleo dos pacientes com a doença de Crohn, foram pelo menos 849 genes expressos de forma diferente do tecido saudável. Considerando os dois tecidos analisados de pacientes com a doença, foi observado um conjunto de 204 genes alterados de forma significativa quando comparados aos tecidos não afetados.
“A pesquisa traz à luz o papel desempenhado pelo tecido adiposo mesenterial no armazenamento de células imunes, e também do envolvimento de respostas imunes controladas por antígenos, indicadas pela presença dos plasmócitos”, diz Leal, que coordena na Unicamp o Laboratório de Investigação em Doenças Inflamatórias Intestinais (LABDII).
Diferentemente da artrite reumatoide, do lúpus ou da psoríase, por exemplo, a doença de Crohn não é caracterizada como autoimune. Isso porque até hoje não foi encontrado um anticorpo circulante que ataque alguma estrutura ou célula do indivíduo, como acontece nessas outras condições. A pesquisa, no entanto, reforça como o sistema imune tem papel fundamental na doença, que por isso é classificada como imunomediada.
Os pesquisadores agora planejam continuar monitorando os pacientes que tiveram os tecidos analisados. A ideia é correlacionar a evolução da doença nos próximos anos com o conjunto de genes alterados em cada um. Assim, espera-se que futuramente seja possível prever aqueles que podem ter pior evolução no pós-operatório ou recaída.
“A doença de Crohn pode ser de difícil manejo, por apresentar sintomas e evolução clínica muito variáveis de um paciente para outro. Queremos entender como ocorrem as formas mais graves da doença, em que a inflamação na alça do intestino pode gerar fístulas [comunicação de um órgão para o outro], abscessos, perfuração espontânea ou obstrução intestinal, precisando de cirurgia”, explica.
Além disso, poderão ser prescritos tratamentos mais direcionados para o perfil do paciente. Por ser uma doença imunomediada, muitos pacientes tomam medicamentos que diminuem a atividade do sistema imune – uma preocupação durante a pandemia de COVID-19.
“Estamos orientando nossos pacientes a irem ao hospital apenas em caso de extrema necessidade. Eles estão no grupo de maior risco para o novo coronavírus”, diz a pesquisadora.
O artigo Whole transcriptional analysis identifies markers of B, T and plasma cell signaling pathways in the mesenteric adipose tissue associated with Crohn’s disease (doi: 10.1186/s12967-020-02220-3), de Francesca Aparecida Ramos da Silva, Lívia Bitencourt Pascoal, Isabella Dotti, Maria de Lourdes Setsuko Ayrizono, Daniel Aguilar, Bruno Lima Rodrigues, Montserrat Arroyes, Elena Ferrer-Picon, Marciane Milanski, Lício Augusto Velloso, João José Fagundes, Azucena Salas e Raquel Franco Leal, pode ser lido em: https://translational-medicine.biomedcentral.com/articles/10.1186/s12967-020-02220-3.
Fonte: Agência FAPESP